Espaço, Tempo e o Mundo Virtual,
por Marilena Chauí - Café
Filosófico do dia 2 de setembro de 2010
Transcrição de Leeward Wang
Merleau Ponty escreveu: Nós não
somos uma consciência cognitiva pura. Nós somos uma consciência encarnada num
corpo. O nosso Corpo não é um objeto tal como descrito pelas ciências. Mas é um
corpo humano, isto é, habitado e animado por uma consciência. Nós não somos
pensamento puro, porque nós somos um corpo. Mas nós não somos uma coisa, porque
nós somos uma consciência.
O MUNDO não é um conjunto de
coisas e fatos estudados pela ciências segundo relações causais e funcionais.
Além do mundo como conjunto racional de fatos científicos existe o mundo como
lugar em que vivemos, onde vivemos com os outros e rodeados pelas coisas.
Um mundo qualitativo de cores, sons,
odores, tessituras, figuras, fisionomias, obstáculos, caminhos, lembranças, um
mundo afetivo, um mundo com os outros, um mundo de conflito, de luta, de
esperança, de paz. Nós somos, dizia Merleau Ponty, seres temporais, ou seja,
nós nascemos e temos consciência do nascimento e da morte. Ou seja, nós temos a
memória do passado, a esperança do futuro, nós somos seres que fazem a história
e sofrem os efeitos da história. Nós somos tempo. O tempo existe, porque nós
existimos.
Nós somos seres espaciais. Para
nós o mundo é feito de lugares. Perto, longe, o caminho, a mata, acidade, o
campo, o mar, a montanha, o céu, a terra. Esse mundo espacial é feito de
dimensões – o grande, o pequeno, o maior, o menor. Ele é feito de qualidades -cores,
sabores, tessituras, odores, sons.
O que é o nosso corpo?
A física dirá que ele é um
agregado de átomos, uma certa massa e energia que funciona de acordo comas leis
gerais da natureza. A química acrescentará que ele é feito de moléculas de
água, oxigênio ,carbono, enzimas e proteínas, funcionando como qualquer outro
corpo químico. A biologia dirá que é um organismo vivo, um indivíduo, membro de
uma espécie, anima, mamífero, vertebrado, bípede, capaz de adaptar-se ao meio
ambiente por operações e funções internas, dotado de um código genético hereditário
e que se reproduz sexualmente. A psicologia acrescentará que é um feixe de
carne, músculos, ossos que formam aparelhos receptores de estímulos e emissores
de respostas por meio dos quais apresenta comportamentos observáveis.
Estas respostas por meio das
quais o nosso corpo aparece dizem que nosso corpo é uma coisa entre coisas. Uma
máquina, um autômato, cujas operações são observáveis direta ou indiretamente
podendo ser examinada em seus mínimos detalhes nos laboratórios, classificado e
conhecido. Mas é isso um corpo que é nosso. O que é o meu corpo? Meu corpo é um
ser visível, no meio de outros seres visíveis. Mas tem a peculiaridade de ser
um visível vidente, eu vejo, além de ser vista. Mas, não só isso. Eu posso me
ver!
Ou seja, eu sou visível para mim mesma
e eu posso me ver vendo. Há uma interioridade na visão. Meu corpo é um ser
táctil, como os outros corpos. Pode ser tocado, mas ele também tem o poder de tocar,
ele é tocante, mas ele é capaz de tocar-se. O tato é uma operação que o corpo
pode realizar sobre si mesmo. Meu corpo é sonoro como os cristais e os metais.
Podendo ser ouvido, mas ele também tem o poder de ouvir. Mais do que isso, ele
pode fazer se ouvir e ele pode ouvir-se quando ele emiti sons. Eu me ouço falando
e ouço quem me fala. Eu sou, portanto, sonora para mim mesmo. Meu corpo é móvel
entre as coisas móveis, ele é dotado do poder de mover, ele é um movente. Mas
ele é um móvel movente que tem o poder de Se mover ao mover. Portanto, ele é
móvel e movente para si próprio. Meu corpo não é uma coisa, não é uma máquina,
ele não é um feixe de ossos, músculos e sangue, nem uma rede de causas e
efeitos, ele não é um receptáculo para uma alma ou para uma consciência. O meu corpo
é um sensível que é sensível para si mesmo.
O meu corpo é o meu modo fundamental de ser no mundo.
Meu corpo... quando minha mão
direita toca a minha mão esquerda, o que ocorre aqui é um mistério, é um
enigma, porque a mão direita toca a mão esquerda mas é tocada pela mão
esquerda, de tal modo que aquele que toca é tocado e aquele que é tocante é
tocado. E eu não sei mais qual mão toca e qual mão é tocada. O meu corpo é uma
reflexão reversível nele mesmo.
Isso é ser um corpo!
Ora, o meu corpo estende a mão e toca a mão do
outro, vê um outro olhar, percebe uma fisionomia, escuta uma outra voz, eu sei
que diante de mim está um corpo que é do meu outro. Um outro humano que é
habitado por uma consciência como eu. E eu sei, por que ele me fala, e como eu,
seu corpo produz palavras, produz sentido. Nossos corpos formam a
intercorporeidade, porque eles são habitados por uma consciência encarnada. Porque
há uma consciência encarnada, nós formamos uma intersubjetividade.
Enlaçado no tecido do visível,
meu corpo continua a se ver, atado no tecido do tangível ele continua a se
tocar, movido no tecido do movimento ele não cessa de se mover. Sentindo-se
sentir, o corpo realiza algo que a tradição filosófica sempre considerou privilégio
exclusivo da consciência
–
O meu corpo reflexiona!
Na tradição filosófica a reflexão sempre foi o
apanágio, o diferenciador da alma com relação ao corpo, da consciência com
relação ao corpo e ao mundo. Quando nós tomamos o corpo dessa maneira como a fenomenologia
de Merleau-Ponty toma nos vemos aqui que a primeira reflexão não é realizada
pela consciência, a primeira reflexão é realizada pelo corpo. A consciência
aprende com corpo a refletir. Massa sensível e sensorial segregada na massa de
um mundo sensorial o nosso corpo é misterioso. E esse mistério corporal que é
atestado pela experiência criadora dos artistas. A criação é a experiência de uma
diferenciação, onde uma separação no interior da indivisão.
Por exemplo, a experiência
criadora do pintor e do escultor, é uma experiência que se efetua naquele
momento no qual um visível, o corpo do pintor, o corpo do escultor, se faz
vidente - ele vê - sem sair da visibilidade, e um vidente se faz visível: o quadro
ou a escultura, sem sair da visibilidade. A experiência criadora do músico é um
momento no qual um ouvinte - o corpo do músico - se faz sonoro sem sair da
sonoridade. E um sonoro - a música, se faz audível sem sair da sonoridade. A
experiência do escritor e do poeta é um momento no qual um falante - o corpo do
poeta e do escritor - se faz dizível sem abandonar a linguagem e um dizível - o
poema o livro - se faz falante sem sair da linguagem. O corpo é, e é isso que a
experiência artística mostra, essa capacidade de produzir uma diferenciação no interior
de um mundo indiviso. Onde eu não preciso me separar do mundo para me
relacionar com ele através da obra de arte.
Mas é no interior do mundo
sensível, do mundo sensorial, esse mundo espacial e temporal que a obra de arte
é produzida, o que que ela é, ela é uma diferença no interior deste todo que
nos habitamos.
É isso Ser Espacial e Ser Temporal.