terça-feira, 19 de julho de 2016

Ser pó

Não tenho vergonha de ser quem me tornei.
Se cheguei até aqui, foi porque não me nego
Porque brinquei nas poças de lama daquela cidade do interior e me esfreguei no banho até limpar tudo que havia sujado
Quando pequena, ainda precisava apagar o que fazia logo depois de ter feito
E esse apagamento nada mais é do que as cicatrizes que carrego nos joelhos, quando fui árvore
Olhei para trás, fingi não ser mais aquela criança que devorava feijão às 11h da manhã - e repetia o prato.
Meu vô dizia: "Como ela gosta de saladas" e eu sorria em orgulho pela aprovação do homem da família.
Corri muito, na quadra da escola, dos meninos que me perseguiam, do medo do escuro, dos desejos profanos que tinha ainda criança
Corri de mim por uns bons anos
Que serviram para que eu compreendesse porque não esconder, porque não me esconder
Atravessei a estrada de ferro
Firme e robusta, construída pela minha mãe, com ajuda singela do pai
Mas não quis voltar
Voltei algumas vezes para ter a infinita certeza do que me tornara 
Perdi-me e perder-se dói
Virar o sentimentos do avesso pode ser uma travessura da mente
E que mente tive...
Sonhei com alguém menos complicada 
Que não visse na água transparente, pensamentos de chão
Depois aceitei, o chão, o cheiro, a terra e uma incrível ternura pela inutilidade da vida me preencheu
Passei a olhar de frente os medos, os meus e os alheios

(Aceitar é um exercício permanente e cotidiano)

Os medos dos outros são palpáveis
Enquanto os meus, figuram no espaço
Fico sempre a achar cortinas nos olhos que me encaram
Parece que tenho que desvendar as imposições
Não sinto orgulho de ser curiosa
Ainda que a curiosidade me mova
Tenho aprendido a cuidar da minha curiosidade para que ela deixe de ser coisa aflita
ou que seja menos

Amadurecer tem me feito ser dura
Ainda que complacente e de colo acolhedor
Preciso ser dura para me lembrar de não sofrer
Para exteriorizar

Quando saturno retornou a mim, exclamei pensativa: será mais uma crise? Ou reafirmação daquilo que sou porque cheguei até aqui?
Aprendi que estradas de pedra não são definitivas
Prefiro o cheiro do barro e do pó ao cimento

Tenho dificuldade em me prender ao concreto
Então eu voo
Mas de cigarras não entendo 
Os vagalumes me confundem
Hoje sou do escuro
Qualquer lampejo de certeza sobre a claridade torna a minha luta vã

Ainda tenho dúvidas sobre a crença nos astros