quinta-feira, 25 de junho de 2020

Casa-lar

Eu quero uma casa onde eu possa furar as paredes
Enchê-la de verde
Escrever poesia no chão com o pó de café
Pintar a sala
e depois quando eu me cansar do que vejo
mudar tudo de novo

Onde eu possa olhar para além das janelas
Onde suas esculturas sejam de barro
para que as minhas mãos possas tocar e sentir
a terra formando a gente

Lugar das aranhas se entraharem em suas teias
no teto
lugar dos insetos
lugar do estar e ao mesmo tempo ser
espaço tempo dessa arte-vida

Chão que entoa o recolher de si
e o acolher do outro
Chão-mar das lágrimas que correm
da água que passa
do passeio do tempo sobre nós

Os ouvidos que produzem o barulho
E o cheiro que entra pelo buraco do colo
Os pés que voam sob um teto todo seu
O corpo que pede por socorro

Uma casa-lar avulsa e que omite-se de dizer
qualquer coisa que não seja para a criação
de mim

Um lar para ser chamado 
Com flores de todos os tons
E pedaços de paus jogados
Tudo o que compõe esse ciclo 

Do equilíbrio 
que nunca cessa a sua busca
E da respiração
Memória insistente da vida

terça-feira, 16 de junho de 2020

Anunciação



Já estive em muitas frentes pela construção de outro mundo possível. E estou. A minha busca esteve sempre ligada a outros modos de se relacionar, de se construir sujeito nesse mundo, de olhar para o outro e se colocar no lugar do outro. 

Desde pequena nunca entendia porque as pessoas tratavam mal umas as outras. Na escola estava sempre perto das pessoas que sofriam discriminação, por alguma razão, seja pela cor da sua pele, pelo tamanho do seu corpo, por ser pobre. Sempre estava nesse lugar. 

Por muito tempo me perguntei: o que é isso que eu tenho/que me constitui e me faz ser quem eu sou impulsionada por ir contra as injustiças? 

Pensei na minha mãe. Sempre tão honesta, forte, uma guerreira de fato. Solidária, em todos os momentos que pôde ajudou sua família e ainda ajuda.

Pensei no meu pai. Calmo, tranquilo. Difícil de sair do lugar de si. Sempre muito autônomo. O verdadeiro sentido de solitude. Ser só e ser feliz sendo assim. Gostar de sua própria companhia sem ser egocêntrico. 

Pensei na minha avó materna. 06 filhos criados. Uma roça inteira para roçar e uma casa inteira pra cuidar. Nunca foi das letras. É ótima com números. Forte demais pra mim. 

Pensei no meu avô materno. A nossa ligação é indizível. Quem conviveu sabe. Mesmo ele partindo quando eu tinha 13/14 anos. Sua memória é tão forte em mim que eu não preciso me esforçar muito pra sentí-lo. Ele está dentro. 

Então, eu acho que a nossa história se trata muito de voltarmos para a família e buscarmos nossa essência. Aquilo que nos faz genuínos e únicos no mundo. O berço, o seio do lar. O caminho que me fez chegar a doulagem me veio como intuição. Eu senti dentro. Como sinto meu avô. Apesar de sua ausência física, sua memória emocional me constitui imensamente. [Eu penso nele e sinto seu cheiro. Isso só acontece com a memória dele. Como pode uma pessoa que morreu há vinte anos se fazer tão presente em alguns momentos específicos de minha vida?

E foi assim. Duas semanas depois de um episódio intenso e místico aqui em casa, místico, onde me vi nesse lugar de ser terra, ou seja, de organizar o território para que o outro fique bem, e consequentemente todos fiquemos bem. 

A doulagem me veio como anunciação. 
[“Tu vens, tu vens... 
Eu já escuto os teus sinais...”] 

E estava lá. O anúncio da Formação de Doulas. O curso idealizado, planejado, construído e realizado por mulheres. Parteiras, doulas, advogadas, psicólogas, médicas, aromaterapeutas, mães e avós. Aquele lugar onde é possível (SIM, É POSSÍVEL) unir sabedoria popular, evidências científicas, experiência(s), tudo com uma dose de ocitocina, ou seja, tudo com uma injeção de amor e sororidade. 

A doulagem me veio como dado concreto da minha existência. Porque significa unir a minha história com a história de outras mulheres. Com o nascimento de si e do outro. E aí eu passo a me perguntar: de onde vem a doulagem em mim? Do meu nascimento? Ou de antes de mim? 
[“A voz do anjo
Sussurrou no meu ouvido
Eu não duvido
Já escuto os teus sinais”] 

É uma experiência mística, ancestral e cultural de minha trajetória. Eu já doulei outras mulheres sem saber que estava doulando. Eu já fui escudo, proteção, afeto e escuta sensível. E também já fui doulada. Todas nós, quando ultrapassamos a mentira inventada pelo patriarcado que se impõe como uma barreira para a nossa emancipação, a mentira de que devemos ser rivais, doulamos umas as outras. Quando silenciamos o julgamento e damos lugar para o acolhimento genuíno. 

Esse ano, quando minha avó me visitou e passou 04 dias aqui revivi histórias através de sua memória de 90 anos. Sua memória recontou para mim algumas histórias antigas, que já conhecia por outras vozes, e também outras histórias contadas a mim pela primeira vez: 

“O seu avô nunca saiu do meu lado em todos os partos que tive. Ele esteve sempre ali, comigo, segurando a minha mão. Viu todos os filhos nascerem.” 

Isso me encheu de alegria e por mais incrível que possa ser, não de surpresa. Algo em mim dizia que ele estava sempre lá. Aldo, seu nome. Aldo esteve sempre lá, também no nascimento de minha mãe, com tantas complicações no pós-parto... E dessa memória veio outra que nunca me havia sido narrada: 

“Teu avô cuidava das mulheres. Estava sempre rodeado de mulheres grávidas. Veio até para Florianópolis fazer curso pra ajudar as mulheres depois que tinham os fio.” 

Tudo fez muito sentido a partir daí. Eu não precisava saber disso para me fazer doula, para florescer a doula que havia dentro de mim. Porque nem tudo que a gente é precisa das “coisas sabidas”. 

E de novo eu entendi: 
"Sempre vem de dentro." 

Agradecer e honrar o que vem de dentro. 
Agradecer e honrar meus ancestrais. 

Afinal, "para mudar o mundo, é preciso, primeiro, mudar a forma de nascer.” 
Michel Odent 
[A foto do meu avô materno, saudades vô Aldo, nada sobre mim sem ti).