quarta-feira, 21 de julho de 2010

Havia deitado para esquecer suas dores. Fez-se silêncio - nem chuva lá fora, nem ninguém aqui dentro - e o transe do entre-lugar começou. Não ocupava a verdade de estar desperta e nem a ilusão de estar desligada do mundo. Era o pequeno espaço de entre um e outro por onde ela andava agora. Os olhos fechados trouxeram a sensação de estabilidade que ela carregava consigo desde quando ele havia a deixado. Era instável apenas para os outros porque para ela tudo estava claro e nada a fazia sair do seu estado de segurança. Para os pés gelados, um par de meias. Para as mãos que restaram vazias, um lugar logo abaixo do travesseiro. Não precisava sentir que estava composta de outro porque nenhum outro era capaz de acolhê-la da forma que ela precisava. E não sentia medo por isso. Aliás, fazia tempo que não sentia medo, assim como fazia tempo que não chorava. Trocou de lado duas vezes antes de finalmente deixar-se levar pelo sono que parecia insistir em não vir. Em tempos de guerra dormimos com um olho aberto e o outro fechado. Aquele silêncio ensurdecedor a estava terminando de matar: "aquele que te faz ouvir a voz mais baixinha". Foi quando aconteceu o primeiro estado de calamidade. Ouvia-se barulhos de sacolas sendo mexidas como se o vento tivesse conseguido transpassar a janela fechada do quarto de Sofia. Engoliu a seco aquela saliva de tensão e pôde sentir o barulho se repetir. Imaginou o local de onde parecia vir aquele movimento e não se lembrou de ter deixado sacolas jogadas após a limpeza do quarto. Insistiu no sono e cruzou as mãos num ato desesperado de oração. Agora seus pés e mãos voltavam a congelar e não era por falta de alguém. Revirou os olhos na procura desesperada por um outro corpo físico que pudesse estar no local, mas era humanamente impossível. A porta do quarto encontrava-se trancada e o colchão em que Sofia deitava impedia a passagem de algo, alguém, outro sem encostar em seu corpo que no momento tremia um pouco. Mudou de posição pela terceira vez. Agora, deitada de lado podia sentir uma instabilidade por trás de seu corpo frio, porém coberto até o pescoço. Não gostava disso, não gostava de coisas que desafiavam a lógica que ela traçava para si, tudo o que podia tirá-la do seu estado de controle. Como aquele menino do sorriso singelo, cabelo bagunçado, sotaque diferente por quem ela se apaixonou quando tinha 12 anos. Sofia queria dormir, precisava dormir. Sua vida seguia precipitadamente na manhã seguinte e seus medos tinham que ser superados para que pudesse atingir seus desejos maiores. Sofia queria que se apaixonar fosse o maior dos seus problemas como acontecia com ela quando tinha 12 anos. Mas o tempo se encarregou de fazê-la amadurecer conceitos e entender suas fragilidades para que sentimentos incomuns não a dominassem novamente. E isso a fez não chorar mais. Dizem que quando se cresce, aprende-se a segurar o choro. Para Sofia não era preciso segurar, o choro não vinha mais para ela, nem mesmo a vontade de chorar sem lágrimas. A cama vazia ao lado não continuou ocupada por tanta ausência quando ela pôde sentir algo, alguém, outro, puxando a sua coberta. Achou justo, alguma coisa por mais estranha e sobrenatual que fosse teria que conseguir tirá-la da comodidade pela qual estava tão envolvida, onde os sonhos passam por despercebidos quando deveriam fazê-la atravessar o oceano para encontrar um pouco daquilo que perdera após a ida de alguns e a travessia de outros. Acostumada demais com a ausência Sofia desistiu de tantos que suas duas mãos não continham dedos suficientes para fazer essa conta. Agora, ela rezava. Voltou a rezar porque até a crença a pequena havia abandonado quando desistido. Pediu para algo além do que ela vê ajudá-la a seguir no sono ou que fosse sonho. Sentia o corpo pesado por uma energia carregada e depois abriu mão de continuar enfrentando o medo e tentando dormir. Arregalou bem os olhos e ficou por dois minutos juntando forças para criar coragem e acender a luz. "Covarde Sofia, você é uma covarde", foi capaz de dizer a si mesma quando não insistiu na briga pelo espaço do seu quarto. Com a luz acessa e a música tocando, Sofia pôde aceitar definitivamente o que estava um pouco incompreendido por ter chego a ela precocemente: é mais fácil lutar contra aquilo que se vê.

"À noite
fantasmas das coisas não ditas
sombras das coisas não feitas
vêm
ante pé
mexer em seus sonhos."

Paulo Leminski: quem me leva do trivial ao incondicional.

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