quinta-feira, 19 de agosto de 2010

"O diálogo é produzido e mantido através de palavras, sentimentos, ideias que nunca tinham sido trocadas entre eles quando ela ainda vivia. E, também de memórias. O ato de rememoração é forte no romance, o que se explica pelo fato de eles estarem relembrando e narrando momentos que viveram juntos ou separados, momentos contados pela visão masculina e depois pela feminina e vice-e-versa.

É então, que são notadas as diferentes características que levam um ao encontro do outro, que fazem dos dois, seres amigos e apaixonados sem nunca terem tido um contato sexual. Dessa forma, ele conta: “Cansavas-me muito em vida – não paravas de ser, existias demasiado em tudo, solicitavas-me a todo o momento. Eras omnívora: querias devorar a vida de todas as maneiras” ( PEDROSA, p.75). Essa sede de ser dela despertava nele, uma vontade de ser também, porque só ela resgatava a juventude que ele perdera: “Contigo eu podia ir sendo tudo o que tinha para ser, antes e depois e à margem desse trabalho de ser homem.” (PEDROSA, p.66). Ela era ousada com espírito jovial e ele melancólico. A mistura dessas características exercia um só efeito sobre os dois, tornava-os inseparáveis: “Serias capaz de abusar de mim? Porque também eu abusei de ti, tanto. Das tuas ideias, da tua história, do efeito que a minha juventude exercia sobre a tua melancolia” ( PEDROSA, p. 86), conta-nos a personagem feminina. A ousadia dela provocara, sobretudo nele, preocupação e silêncio. Ele gostava de ser jovem com ela, do poder que essa juventude fazia renascer a jovialidade dele, porém, era a linguagem a principal discrepância entre os dois. Ela queria mudar o mundo[1] e ele já havia sido mudado pelo mundo: “Como podes ter vivido tanto e ser tão leve?”, perguntavas-me. Eu respondia-te apenas com sorrisos. Ai de ti se descobrisses que viver demasiado é desistir da vida” (PEDROSA, p.106) desabafa ele sobre esse peso do mundo."



[1] “Eu quero mudar o mundo, tu só queres mudar de cenário” (PEDROSA, p. 27), rememora a personagem em um diálogo dos dois.

PEDROSA, Inês. Fazes-me falta. São Paulo Planeta, 2003.


Resolvi colar um trecho desse pré-ensaio que escrevi para literatura portuguesa na minha sétima fase do curso de letras da UFSC. Diz muito do que acreditamos e muito do que temos vivido. A contemporaneidade atravessa a nossa experiência como uma faca que corta sem ser punida. Temos vivido a violência calados em tempos de guerras mascaradas. Nada pior do que a acomodação daquilo que somos. Acordem, é tempo de mudar o mundo?

Um comentário:

  1. Eu fiquei muito satisfeito em ver que você tem mesmo tanta propriedade ao escrever.
    Isso valoriza muito a sua visita ao meu pequeno Teatro.

    A comodação é a inércia terrível, o infinito desabsoluto.

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