segunda-feira, 11 de outubro de 2010

"O nosso sonho de viver ia adiante de nós, alado, e nós tínhamos para ele um sorriso igual e alheio,combinado nas almas, sem nos olharmos, sem sabermos um do outro mais do que a presença apoiada de um braço contra a atenção entregue do outro braço que o sentia.
A nossa vida não tinha dentro. Éramos fora e outros. Desconhecíamo-nos, como se houvéssemos aparecido às nossas almas depois de uma viagem através dos sonhos...
Tínhamo-nos esquecido do tempo, e o espaço imenso empequenara-se-nos na atenção. Fora daquelas àrvores próximas, daquelas latadas afastadas, daqueles montes últimos no horizonte haveria algumas coisa de real, de merecedor do olhar aberto que se dá às coisas que existem?...
Na clepsidra da nossa imperfeição gotas regulares de sonho marcavam horas irreais...Nada vale a pena, ó meu amor longícuo, senão o saber como é suave saber que nada vale a pena...
[...]
Ali vivemos um tempo que não sabia decorrer, um espaço para que não havia pensar em poder-se medi-lo. um decorrer fora do Tempo, uma extensão que desconhecia os hábitos da realidade do espaço...
[...]
E nós, não nos perguntávamos para que era aquilo, porque gozávamos o saber que aquilo não era para nada.
Nós sabíamos ali, por uma intuição que por certo não tínhamos, que este dolorido mundo onde seríamos dois, se existia, era para além da linha extrema onde as montanhas são hálitos de formas, e para além dessa não havia nada. E era por causa da contradição de saber isto que a nossa hora de ali era escura como uma caverna em terra de supersticiosos, e o nosso senti-la era estranho como um perfil da cidade mourisca contra um céu de crepúsculo outonal...
[...]

Bernardo Soares

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